Mandioca nos Cornos!
Roberto Villani
Zulmira Reza Brava nasceu lá
pelos cafundó do sertão nordestino. Na fronteira entre o Não sei Aonde e o
Lugar Nenhum. Filha de Maria Muma e Silvério Pereira, negro azulado de olhos
verdes, vindo moleque de Moçambique. Moravam numa casa de pau-a-pique, bem no
centro de savana tórrida, alugada de um sujeito um pouco menos pobre que
eles. Silvério cuidava da triste
sobrevivência em lavoura de mandioca e cana de açúcar. Andava quilômetros a pé,
na ida e na volta, todos os dias. Maria Muma tratava da casa e dos treze filhos
que a vida, inconseqüente, lhe deu.
Zulmira
era a mais velha da prole. Mal e mal aprendeu a ler numa escolinha de fazenda a
quilômetros de sua casa. Menina-moça, revoltava-se com a miséria de todos os
dias. Até que, de repente, juntou o pouco de roupas que tinha e pôs-se porta a
fora. Disse à mãe que iria tentar a vida. Se tudo desse certo, voltaria para
buscar a família. Andou pra lá, andou pra cá... Por fim de algumas léguas,
Zulmira ajeitou-se no Bar das Frutinhas Frescas, nome que denunciava o comércio
ilegal de meninas-moças. E ali descansou a pequena trouxa pendurada às
costas. E ali fez seus primeiros tostões
às custas dos prazeres que até então não conhecera.
Certa
noite, apavorado, atônito, um caminhoneiro invadiu o Bar das Frutinhas Frescas
com um homem nos braços. Muito ferido, desacordado, o tal sujeito foi posto de
costas no chão, para alvoroço geral. Havia meninas que choravam copiosamente,
outras corriam de um lado para outro. Houve até uma delas que desmaiou à frente
do moribundo.
-
Foi briga de faca. Coisa de morte, gente. – disse o caminhoneiro que trouxe o
homem. – Aqui não tem ambulância nem policia por perto...
-
Deixe que disso eu cuido. Sai todo mundo de perto! Só preciso de uma mandioca
das gorda. – falou Zulmira espantando quem estava por lá.
Alguém
rapidamente atendeu o pedido. Zulmira meteu as mãos por entre a saia e de lá
retirou um canivete. E com ele cortou duas rodelas da mandioca, cada uma
colocada sobre a testa do ferido. Pôs-se de pé e, com os braços em forma de
cruz, rezou oração nunca ouvida, nunca falada. Coisa dela, particular.
-
Deita o cabra na cama do quartinho dos fundo. Hoje, ninguém usa o locar. Tem
muita moita lá pra trás. E pra quem quer
saber, aprendi essas coisa com uma tia macumbeira.
Pois
a coisa funcionou. No dia seguinte, o tal homem estava de pé, novo em folha. Só
algumas cicatrizes marcavam os ferimentos. Era difícil acreditar que o
benzimento da Zulmira fizera tão grande milagre.
Zulmira
fez-se adolescente, adulta... Do Bar das Frutinhas Frescas transferiu-se para a
Casa da Mãe Napolina, cafetina famosa do Rio de Janeiro. Lá, entre um trabalho
e outro, Zulmira praticava seus benzimentos, sempre com grande sucesso. Havia
quem a considerasse uma grande médium, no que ela retrucava.
-
Sou isso não, patrão. Mas tem um caboclo que me acompanha aqui do lado. É ele
que me dá força pras mandinga e rezas das brava.
Dizem
que, certa noite, apareceu por lá um doutor muito necessitado. Vinha de
Brasília sob indicação de um amigo, que lhe aconselhou Zulmira como a única
salvação. Então, o tal doutor desvencilhou-se da vergonha e contou seu problema
à benzedeira. Zulmira pensou, pensou...
Olhou o homem de frente e...
-
Pro seu causo, o remédio é mandioca nos cornos. Esse tratamento levanta defunto
da sepurtura. O que tá pra baxo, fica pra cima. O froxo fica forte. O covarde vira
valente. Quanto à sua mulhé, não prometo que ela vorta. O dotô não deu pra ela
o que ela percisava. Quem não come bem em casa, procura comê de quarqué jeito na
casa de arguém.
O
doutor de Brasília ficou curado. Sua mulher, entretanto, não voltou para casa.
Em compensação, ele ficou famoso por suas inúmeras conquistas. E de tão
agradecido, quis levar Zulmira Reza Brava para a Capital. Não conseguiu.
-
Muito obrigado, patrão. Mas perfiro ficar por aqui mermo. Meu negócio é botá
mandioca nos cornos dos outro. Mas quando percisar, basta me procurar. Na casa
de Mãe Napolina, mandioca é o que não falta!
Como ficar em ponto de bala? Freud
explica.
Roberto Villani
Há
muitos anos eu trabalhava numa grande empresa na cidade de Cubatão. Na verdade,
onze anos. Tempo bastante para suportar odores de gases e outros aromas
tóxicos. Parece que não, mas o corpo acostuma-se e a gente, no dia a dia, acaba
tolerando o intolerável. De segunda a sexta eu fazia viagem de ida e volta
entre Santos e Cubatão. Uma perua Kombi apanhava-me às seis e trinta da manhã e
me devolvia aproximadamente às dezoito e trinta. Nessas viagens eu tinha a
companhia de cinco colegas de trabalho, o Álvaro, o Jacó, o Castro, o José e o
Beronézio, nordestino gente fina. Na ida, não falávamos, dormíamos. Mas na
volta, haja assunto para tanta conversa.
-
E aí, “Bérro”, já arrumou maninha? – perguntou Jacó.
-
Não sou “Bérro”, seu bosta! Meu nome é Beronézio, mas pode me chamar de Berô. É
Berô, com um erre só e acento no o. – Berô irritava-se quando alguém de
propósito ou sem querer colocava um erre a mais no seu apelido. E respondeu: -
Não consegui ninguém, mas vou conseguir.
-
Vê se não demora muito, a idade tá chegando... – aconselhou o Álvaro.
-
E daí? – Berô começava a irritar-se.
-
Você acaba ficando broxa. – explosão de gargalhadas.
Berô,
pelo que constava naquela época, era virgem. Muito tímido, tinha gigantesca
dificuldade para conquistar garotas. Até para responder um sorriso feminino não
conseguia. Com mais de trinta anos, a coisa estava muito complicada para ele. Talvez
por essa razão, Berô tornara-se uma pessoa triste, quase sempre deprimido,
sorumbático. Por vê-lo sempre assim, seus colegas davam-lhe conselhos para
conquistar moças casadoiras. As colegas também tentavam socorrê-lo através do
mesmo mistér.
-
O teu problema, Berô, só Freud trata. – disse-lhe um amigo.
-
Será que ele tem hora vaga pra me atender?
-
Berô, Freud já morreu há muito tempo. Você tem que ler livros dele. Tem um
grupo de estudos sobre Freud muito bom. Eu vou te arranjar o endereço.
Berô
não conversava nas viagens que fazíamos entre Santos e Cubatão. Nem na ida, nem
na volta. Mantinha-se quieto, ensimesmado. Puxávamos por ele sem resultados.
Sempre lacônico nas respostas. Mas numa tarde, à saída do trabalho, pude
observar o Berô muito comunicativo com os colegas. No caminho em direção à nossa
kombi, abraçava, conversava e, fato notório, ria muito. Gargalhava. O que teria
acontecido com o moço para tanta mudança de comportamento?
-
Estou encontrando a minha liberdade, colegas. – e gargalhou para espanto da
coletividade kombiana. E prosseguiu:
- Freud está me salvando. – e mais gargalhada.
-
Mas o que ele te fez? – perguntou o Álvaro, espantado como nós.
Berô
fez pose de intelectual e respondeu:
-
Alguém lá do grupo de estudos me disse: o humor é o remédio para todos os males
da vida. Sem humor, nós sofremos de enxaqueca, problemas digestivos, problemas
psicológicos e o pior, problemas sexuais. – gargalhou e... – O meu caso. –
outra gargalhada. – Mais tarde, vou testar a minha performance. Vou ao Gonzaga,
tomo um café no Atlântico e aplico a
minha técnica freudiana. O meu sucesso sexual, caros colegas, é o meu bom
humor. O cara disse que é do Freud essa jogada. E eu acho que dá certo. – e
gargalhou.
Não preciso dizer que fomos os quatro
bisbilhotar a tal performance do Berô. Quando chegamos ao Café Atlântico, ele
saía de lá. Encostou-se numa pilastra do local, e esperava alguma jovem passar.
Aí caía na gargalhada. É claro que criava um mal estar para as moças que por
ele passavam: “Esse imbecil tá rindo de mim?”
Mas queríamos
ver o resultado da tal terapia; ele na cama com uma mulher. Nessa ideia,
cotizamo-nos os quatro e contratamos uma garota de programa. Tudo acertado, ela
foi na noite seguinte ao Gonzaga e lá estava e ele encostado na mesma pilastra,
gargalhando. A jovem aproximou-se e com facilidade conquistou o nosso colega
Berô. Afinal, era o que ele mais queria na vida, ter uma namorada. Os dois
abraçados à frente, e os quatro curiosos logo atrás, nós. Os dois entraram num
hotel e nós ficamos aguardando do lado de fora. Queríamos saber dela, não dele,
como havia se saído o Berô. Não demorou muito e vimos a jovem deixando o hotel
aparentemente nervosa.
-
O que houve? – perguntou o Jacó.
-
Esse cara é louco. Entramos no quarto, tiramos a roupa e começamos as
preliminares. Eu notei que a coisa não ia bem pra ele... De repente, ele
começou a gargalhar feito doido e queria que eu gargalhasse também. Disse que
era pra ele ficar em ponto de bala. Eu hein? To fora. - e partiu batendo os
pés.
Estávamos
perplexos, boquiabertos, sem palavras para comentar. O que nos restou foram
gostosas e excitantes gargalhadas.
De vez
enquanto eu ainda penso: “Mas será que dá certo mesmo?”
As viúvas do Sargento Pau d´Água
“Amanhã, às 15 horas, sairá o féretro do velório na casa do memorável falecido, na Rua das Tordesilhas, número 96, em séqüito a pé, diretamente para o Cemitério das Saudades”. – aviso afixado à porta do sobrado onde o corpo estava sendo velado.
Sempre foi um homem simples, diríamos à primeira vista, puro, bondoso, um verdadeiro cavalheiro. Nascido de família humilde, estudou em escolas públicas até o ginásio. E concluiu o curso de perito em contabilidade, origem da sua profissão. Ozório da Silva Pernila fez o Tiro de Guerra na cidade de Ordenha, vizinha da sua pequena Moreba. Nessa época Ozório ganhou o apelido de Sargento, principalmente porque batia continência para todos que lhe cruzavam os caminhos. Era sua maneira enfática de cumprimentar. Hábito adquirido nos tempos do serviço militar.
O Sargento Ozório não foi moço de aventuras amorosas, diziam. Guardava-se, assim afirmava, para o casamento. Que haveria de ser com moça virgem, prendada e, principalmente, fiel. Por essa razão não teria pressa para encontrar sua alma gêmea. A descoberta deveria ser ao acaso, quando o amor mútuo desabrochasse ao trocar dos primeiros olhares. O que aconteceu aos seus vinte anos de idade. Namoraram, Sargento Ozório e Magdalena, noivaram e casaram ao tempo de três meses. Tudo muito rápido. Como rápido apareceram os sete filhos, um após outro, com intervalo de dez meses entre cada um. Essa derrama de rebentos desencadeou a ruína de Magdalena, de seu corpo antes escultural. E de seus nervos que, estressados, não poupavam diariamente o então infeliz do Sargento Ozório.
Passou a beber, ele. Desgostava-se voltar para casa depois de um dia de trabalho. Por esse motivo, alguns críticos o chamavam de Pau d´Água, o segundo apelido do pobre Ozório. Sargento Pau d´Água, pobrezinho. Dava pena vê-lo cambaleante buscar a fechadura da porta de sua casa. E de vê-lo tomar porradas quando dona Magdalena ajudava-o a entrar.
Moreba fazia cruzamento de linhas ferroviárias. Havia trem de norte a sul e de leste a oeste. E vice-versa. Esse privilégio da cidade oferecia oportunidades ao Sargento Pau d´Água, o Ozório, para trabalhar em empresas da região. Contabilidade era o seu ofício, como já disse. Assim, duas vezes por semana Ozório, o Sargento Pau d´Água viajava aos municípios vizinhos em busca do ganha pão. Vida sacrificada, comentavam todos, o que gerava muita pena do contador.
O cortejo fúnebre caminhava lento rumo à última morada do Ozório. Todos a pé, menos evidentemente o caixão carregado por uma simples carroça. A viúva com os sete filhos à frente, não contendo as lágrimas que lhe lavavam o rosto. Acompanhavam-lhe o padre, o prefeito, alguns vereadores, o farmacêutico e outras autoridades locais. Além do povo, evidentemente. De repente, numa das ruas perpendiculares, surge mulher vestida de preto acompanhada de sete jovens, todos de luto. E do outro lado, outra mulher com sete crianças, também todas de luto. E outras... E outros... Meu Deus! Ao todo, sete mulheres, cada uma com sete filhos. Originárias de cidades vizinhas. Ao que se pode concluir, sete viúvas do cafajeste do Sargento Pau d´Água, que se entreolhavam desconfiadas, mas em silêncio. Sete maravilhas do mundo, sete correntes do espaço, sete cornos do demo, sete viúvas... Além de safado, o homem era cabalístico.
Notava-se a revolta de todos. O padre benzia-se a todo instante. Depositaram o caixão ao lado da sepultura. Silêncio absoluto. Magdalena, verde de tanta indignação, procurava manter-se em nível superior. Mas não mais chorava. Ninguém se arriscava a falar sobre o morto. As viúvas ladearam a principal, Magdalena. Cada uma com seus rebentos à frente. Em profundo silêncio. Nenhuma lágrima, nenhuma emoção de tristeza. Somente expressões de quem descobriu muito tarde a maior farsa de suas vidas.
- Morfético! – uma das viúvas apresentou seu ódio. E desencadeou reação nunca vista num enterro. Em vez de flores, a turba despejou pedras no ataúde. Palavrões, dos mais ousados, irromperam no local, todos para a degradação da alma do fulano. E retiraram-se sem que o falecido descesse à tumba. Só restou o coveiro, sentado ao lado do ataúde, fumando um cigarro de palha.
- Eu te absolvo, companheiro. – disse o sujeito, benzeu-se e atirou o cigarro no fundo do buraco. E terminou o seu trabalho, aliás, com muita propriedade.
Roberto Villani
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